O “Gorózinho” anual de Dt 14:26

A posição bíblica a respeito da ingestão de bebidas alcoólicas nunca foi uma questão simples. Moderacionistas usam alguns versos bíblicos para defender a sanção divina, equilibrada, mas muitas vezes ignoram os outros versos que mostram as torcidas de nariz de Deus, quando se refere à bebidas fermentadas. Abstencionistas se referem a essa tensão como a “tolerância carinhosa” de um Líder amável, usando como exemplos semelhantes a escravidão e a poligamia.

Mas nunca fiquei convencido. Penso que, como cristão que acredita no princípio Analogia Scripturae de interpretação, a Bíblia precisa manter a unidade no seu conteúdo e permanecer como uma rocha na explicação de si mesma. E não me parecem razoáveis à luz desse conceito.

Outro dia (faz uns 2 meses), descobri o livro “Wine in The Bible: A Biblical Study on the Use of Alcoholic Beverages”,  escrito pelo teólogo Samuele Bacchiocci (você pode comprá-lo aqui, eu recomendo!), e percebi que a questão era ainda mais profunda do que eu imaginava – são 374 páginas tratando somente sobre esse assunto. Mas pelo menos fiquei satisfeito. Ele defende a posição do proibicionismo, mostrando como em diversos lugares Deus proíbe o uso de bebidas fermentadas e explicando diversas passagens mal-interpretadas que aparentam dar suporte à visão moderacionista, além de recorrer à diversas fontes históricas para elucidar diversas afirmações bíblicas e demonstrar as técnicas de conservação utilizadas nos tempos bíblicos (antigo e novo testamento).

Como sei que provavelmente irá demorar muito (se é que vai acontecer) para o livro ser traduzido, resolvi fazer uma tradução livre de alguns “retalhos” que tratam das partes mais polêmicas, pra ajudar no estudo. A primeira parte que escolhi, abaixo, é um pedaço do capítulo 7, que trata de passagens mal compreendidas.

Explorando algumas passagens mal compreendidas

A Bíblia é um livro fonte e não um manual doutrinário onde temas são apresentados sistematicamente ou em ordem seqüencial. Para determinar os ensinos das Escrituras a respeito de qualquer questão, todas passagens relevantes precisam ser examinadas à luz do seu contexto imediato e do ensino bíblico geral.

Analogia das Escrituras

Um dos mais importantes portos seguros para a interpretação de textos bíblicos é o respeito pela analogia das Escrituras. Isso significa que a Bíblia deve servir de guia para entender a Bíblia. Qualquer texto problemático precisa interpretado não isoladamente, mas à luz do ensino geral bíblico. Uma interpretação contraditória à tendência integral das Escrituras deve ser rejeitada como errado. Fazer diferente disso significa ver a Bíblia como um mero produto literário humano, infestado de ensinamentos contraditórios. Tal visão é negada pelas próprias testemunhas internas das Escrituras, que declaram que o seu conteúdo não é produto de interpretação particular, “nenhuma profecia da Escritura é de particular interpretação. Porque a profecia nunca foi produzida por vontade de homem algum, mas os homens santos de Deus falaram inspirados pelo Espírito Santo.” (2 Pe 1:20-21)

Procedimento

Nosso procedimento será interpretar cada um dos textos examinados neste capítulo da seguinte forma:
• Sintaticamente, isso é, de acordo com as regras gramaticais governando o texto;
• Contextualmente, isso é, à luz do seu imediato ou mais abrangente contexto;
• Historicamente, isso é, à luz das circunstâncias e costumes da época;
• Analogicamente, isso é, respeitando os ensinamentos integrais das Escrituras.

Nos capítulos anteriores já lidamos com diversos textos mal entendidos, especialmente nos nossos estudos nos ensinamentos de Jesus e da igreja apostólica a respeito das bebidas alcoólicas. Alguns textos, entretanto, foram intencionalmente omitidos para evitar uma longa digressão do tema principal.

O objetivo desse capítulo é examinar 5 textos fundamentais, 3 do AT e 2 do NT. Grande importância está vinculada a esses textos por aqueles que acham que a Bíblia sanciona um uso moderado de bebidas alcoólicas.

O capítulo está dividido em 5 partes, cada uma examinado uma das seguintes passagens:

(1) Deuteronômio 14:26
(2) Provérbios 31:6
(3) Oséias 4:11
(4) 1 Timóteo 5:23
(5) I Timóteo 3:8

(Essa matéria trata somente da primeira passagem, afinal, meu tempo não é ilimitado rsrs E eu fiquei com preguiça de procurar as referências, então caso você queira alguma, deixe nos comentários)

Parte 1 – Deuteronomio 14:26 “VINHO E BEBIDA FORTE”

Importância da passagem
Deuteronômio 14:22-26 contém uma ordenança única a respeito do festival anual de colheita, no qual Toto Israel se ajuntava no santuário para trazer seus dízimos e celebrar a colheita abundante concedida por Deus. A ordenança consiste de uma regra geral para aqueles que vivem próximos ao santuário e uma provisão para aqueles que vivem distantes. A regra geral declara: “Certamente darás os dízimos de todo o fruto da tua semente, que cada ano se recolher do campo. E, perante o Senhor teu Deus, no lugar que escolher para ali fazer habitar o seu nome, comerás os dízimos do teu grão, do teu mosto e do teu azeite, e os primogênitos das tuas vacas e das tuas ovelhas; para que aprendas a temer ao Senhor teu Deus todos os dias. (Dt 14:22-23)

E a provisão especial diz: ”E quando o caminho te for tão comprido que os não possas levar, por estar longe de ti o lugar que escolher o Senhor teu Deus para ali pôr o seu nome, quando o Senhor teu Deus te tiver abençoado;
Então vende-os, e ata o dinheiro na tua mão, e vai ao lugar que escolher o Senhor teu Deus;
E aquele dinheiro darás por tudo o que deseja a tua alma, por vacas, e por ovelhas, e por vinho, e por bebida forte, e por tudo o que te pedir a tua alma; come-o ali perante o Senhor teu Deus, e alegra-te, tu e a tua casa” (Dt 14:24-26).

A provisão especial para o “dízimo atrasado” é considerada pelos moderacionistas como o locus classicus onde a Bíblia claramente sanciona o uso moderado de bebidas alcoólicas. “O impulso dessa passagem é claro,” escreve Kenneth Gentry, “e a sanção divina é inequívoca: shekar (bebida forte alcoólica) não era somente permitida para o povo de Deus, mas poderia ser aproveitada ‘na presença do Senhor’ (v.26) se tomada no ‘temor do Senhor’ (v.26)”(1)

A Natureza do Problema
Precisamos admitir que o texto em questão apresenta um problema, já que aparentemente concede a permissão de Deus, para aqueles viajando para o santuário partindo de lugares distantes, para gastar parte do seu dízimo para adquirir não somente comida (gado, ovelhas) mas também “vinho ou bebida forte” (v.26). A palavra “bebida forte” transmite o substantivo hebraico shekar, um termo usado 23 vezes no antigo testamento. Com exceção do seu uso em Dt 14:26 e possivelmente em alguns outros textos (2), shekar denota uma bebida intoxicante desaprovada por Deus. Provérbios 20:1, por exemplo, condena a “bebida forte” (shekar) de escarnecedora. Semelhantemente, Isaías pronuncia um “ai” sobre “aquele que levanta cedo de manhã, procurando por bebidas fortes (shekar)” (Is 5:11).
A “bebida forte” também é proibida, junto do vinho, aos sacerdotes (Lv 10:9-11) e aos Nazireus (Nm 6:2-4; Jz 13:3-5). Em vista da desaprovação esmagadora da parte de Deus pelo uso do “vinho e da bebida forte”, como podemos explicar a aparente sanção do seu uso no festival anual de colheita descrito em Deuteronômio 14:26?

A solução dos moderacionistas
Moderacionistas tentam resolver essa aparente tensão distinguindo entre a desaprovação divina do consumo imoderado do “vinho e da bebida forte” e a aprovação divina do seu uso moderado [ no “temor do Senhor” ], Kenneth Gentry, por exemplo, mantém que shekar “poderia ser aproveitado na presença do Senhor se tomado no temor do Senhor”. (3) Essa solução é inaceitável por duas razões. Primeiro, a frase “para que vocês aprendam a temer o Senhor seu Deus para sempre” (Dt 14:23), não qualifica diretamente o uso do “vinho e da bebida forte”, mas o retorno do dízimo no tempo de colheita e o comer da produção de grãos, vinho (tirosh – suco de uva), óleo e primícias dos rebanhos, que deveria ser feito no santuário (Dt 14:23). Segundo, o consumo de bebidas alcoólicas, como vimos no capítulo 3, é condenado nas Escrituras, a despeito da quantidade usada [logo postarei uma matéria sobre esse capítulo].
Isso significa que ou shekar aqui está sendo utilizado diferente do que o normalmente é, ou que as Escrituras se contradizem. O último negaria a divina revelação e inspiração da Bíblia (2 Tm 3:16; 2 Pe 1:20-21).

Uma concessão mosaica

Uma solução diferente é proposta por Lael Othniel Caesar na sua tese de Mestrado sobre “O significado Yayin no Antigo Testamento”, apresentada na Andrews University, Caesar sugere que a “aparente tensão entre Deuteronomio 14:26 e o testemunho do resto das Escrituras (contra o uso de bebidas alcoólicas) é aqui visto como a profunda percepção de um líder inspirado e compassivo com os caminhos do seu povo. A prevalência do uso do álcool na vida diária e festividades do antigo Israel confirma adequadamente a percepção Mosaica embora não invalide o requisito divino de abstenção do álcool” (4)
Caesar tenta resolver a aparente tensão entre a desaprovação divina e a alegada sanção mosaica tornando a última a concessão de um líder compassivo que conhecia o vício de seu próprio povo ao uso do álcool. Essa resolução é contraditória por dois motivos: o contexto e o bom senso. O contexto da passagem é um chamado ao povo para serem “santos ao Senhor” (Dt 14:2,21) não comendo nada impuro (v. 3-21). Poderia Moisés advertir o povo a viver o seu chamado de santidade se abstendo de comidas impuras e logo depois finalizar a advertência permitindo que consumissem livremente bebidas intoxicantes, como “vinho e bebida forte”?
O bom senso nos dita que se Moisés conhecesse o vício de seu povo ao uso de álcool ele não teria recomendado que eles livremente gastassem parte do dízimo com bebidas alcoólicas. Tal recomendação não representaria o “insight de um experiente e compassivo líder”, mas a cegueira e incompetência de um líder irresponsável.
A abordagem de Caesar ao problema o deixa sem escolha senão concluir que enquanto “de forma geral, o OT condena não somente a bebedeira, mas a ingestão de álcool per se”, Deuteronômio 14:26 “concede permissão para utilizar tais bebidas intoxicantes”. (5) Tal conclusão é equivalente a dizer que a Bíblia se contradiz no ensinamento sobre bebidas alcoólicas. É evidente que essa conclusão ignora o princípio de analogia das Escrituras, de acordo com o qual um texto problema deve ser interpretado à luz dos ensinamentos gerais da Bíblia.
“Suco de Uva Gratificante (satisfying)”
Robert Teachout apresenta uma solução digna de nota à aparente tensão em Dt 14:26. Em resumo, Teachout mostra em sua dissertação que todas as vezes em que yayin e shekar (“vinho e bebida forte”) aparecem juntos, as duas palavras uniformemente constituem uma hendíadis (figura que exprime uma idéia mediante dois substantivos, ligados pela conjunção e, o que habitualmente se exprimiria com um substantivo e um adjetivo, ou com um complemento determinativo: pela poeira e pela estrada, ao invés de pela estrada poeirenta), isso é, ambos expressam a mesma idéia do vinho. Na maioria dos casos se referem ao vinho intoxicante, mas em Dt 14:26 as duas palavras yayin e shekar dão juntos a idéia de um “suco de uva gratificante” (satisfying grape juice). (6)
Teachout baseia sua conclusão em considerações textuais e contextuais. Textualmente ele nota que a palavra shekar, como yayin, “pode se referir ao suco de uva como também ao vinho (cf. Dt 29.6; Nm 28.7; Ex 29.40).” (7) O verbo shakar, que é etimologicamente ligado ao substantivo shekar, significa primariamente:
“beber profundamente”, como indicado no seu uso em Ageu 1:5-6 e Cânticos 5:1 (8). Assim a ideia de bebedeira não é um sifnificado inato do substantivo ou do verbo, mas é determinado pelo seu contexto e a bebida que está sendo ingerida.
Contextualmente, Teachout argumenta convincentemente que “o contexto exige essa compreensão, pois indica especificamente que a bebida devia ser bebida ‘perante o Senhor’. A fim de se regozijar apropriadamente perante o Senhor, sobre o que Ele havia provido, alguém precisaria estar sóbrio. [ não diga! ] Considerando que Deus já havia proibido intoxicantes (sob pena de morte – Lv 10:9) aos sacerdotes servindo em Sua presença, seria totalmente fora de questão pensar que Deus comandaria o uso dos mesmos intoxicantes pelos adoradores em uma de suas reuniões perante Ele, especialmente quando estivesse na companhia dos sacerdotes.
“O contexto também sugere muito fortemente que somente suco fresco está sendo abordado no verso 26 à luz dos versos anteriores. No verso 23 é muito evidente que todos que vem ao festival da colheita trarão e beberão tirosh e não yayin. Embora yayin possa ser considerado um termo de certa forma ambíguo (podendo se referir ao suco de uva ou ao vinho fermentado, dependendo do contexto), tirosh refere-se somente ao suco fresco da uva em cada uma de suas 38 ocorrências no antigo testamento. A bebida que deveria ser consumida no festival por aqueles que estavam perto o suficiente para trazer o seu dízimo da colheita é explicitamente restrita ao suco de uva fresco. Portanto, parece muito inapropriado assumir que aqueles que estivessem tão longe, a ponto de ter que trocar seus dízimos por dinheiro, estavam livres para comprar e beber vinho fermentado. Assim, tanto a natureza do festival quanto a participação de sacerdotes (v 26) indicaria que a bebida no verso 26 se refere ao suco da uva fresco.” (9)
Essas observações perceptivas a respeito das implicações do contexto, fornecem, na minha perspectiva, razões conclusivas para crer que a frase “vinho e bebida forte” não podem se referir à bebidas alcoólicas. A proposta de Teachout que duas palavras são usadas juntas (uma hendíadis) na passagem para expressa uma idéia merece séria consideração. A ocorrência freqüente de yayin e shekar, ou juntar ou em um paralelismo de sinonímia (Pv 20:1), sugere a possibilidade de as duas palavras de fato se referirem a uma bebida comum de uva, que poderia ser fermentada ou não, dependendo do contexto.
“Uma Bebida Doce”
Sem desconsiderar a proposta de Teachout, eu desejo submeter uma proposta alternativa, isso é, que shekar em Dt 14:26 pode se referir a uma bebida doce feita de tâmatas ou de mel. Nesse caso, o texto seria lido como “e gastar o dinheiro com o que desejares sua alma, gado, ovelhas, suco de uva ou bebidas doces”. [ refrigerante da época?] Apoio para essa proposta vem do uso de shekar em Is 24:9 e do significado raiz da palavra encontrado em idiomas cognatos ao hebraico.
Descrevendo os efeitos do julgamento divino sobre a terra, Isaías diz: “Não mais beberão vinho ( yayin ) com cânticos; a bebida forte ( shekar ) é amarga para aqueles que a bebem” (Isaias 24.9). A tradução de shekar como “bebida forte” obscurece o contraste entre amargo e doce. O adjetivo “forte”, embora consistentemente usado em conjunção com shekar, não é parte da palavra em si, mas uma adição. Isso dá a falsa impressão, para um leitor moderno, que as pessoas bebiam licor destilado nos tempos do antigo testamento.
Isso é obviamente errado, porque o processo de destilação alcoólica não se desenvolveu até cerca de A.D. 500. Isaías 24.9 sugere que shekar no Antigo Testamento era uma bebida valorizada por conta de sua doçura, uma qualidade que desaparece conforme o açúcar é convertido em álcool.
Leon Field corretamente observa que “o contraste entre ‘doce’ e ‘amargo’ em Isaías 24:9 (literalmente, amarga será a bebida doce – shekar – para aqueles que a beberem.’) mostra que shekar era valorizada pela sua doçura, uma qualidade que descresce em proporção à quantidade de álcool presente. O fato de ter seu consumo comandado ‘perante o Senhor’ (Dt 24:26) e também ser oferecida em sacrificio (Nm 28:7), indica que o termo incluía formas não fermentadas de suco de fruta.” (10)

Derivação de Shekar

A derivação e uso de shekar nos dá suporte à perspectiva de que a palavra era usada para denotar uma bebida doce. Em Aramaico, por exemplo, o substantivo shikra, que está relacionado ao hebraico shekar, de acordo com G. R. Driver, “parece ter denotado vários licores intoxicantes, incluindo cerveja feita de cevada e vinho de tâmaras, bem como hidromel ou vinho misturado” (11) Em Acadiano, o substantivo shikarum significava “cerveja” feita de grãos. Parece, entretanto, que cerveja não era muito proeminente em Israel. A produção da cerveja é, na verdade, um processo sem menções bíblicas. Além do mais, como Teachout aponta, “cada incidente histórico (no AT) mencionando a ingestão de bebidas intoxicantes que causam conseqüente embriaguez especificamente se refere ao produto fermentado do vinho”. (12)

Em vista da abundância de palmeiras nas “terras bíblicas” e da fácil produção de vinho de tâmaras ou vinho de palma, parece provável que shekar na Bíblia se refere não somente à cerveja, mas à uma bebida de tâmaras. Essa visão é apoiada pelo uso dos derivados de shekar em Aramaico, Síriaco e Arabico para denotar vinho de tâmara.

Stephen M. Reynolds, um dos tradutores na Nova Versão Internacional, observa que “o idioma Siríaco tem uma palavra cognata que sugere que o significado primiitvo da raiz proto-semitica sh-k-r pode ter sido uma bebida feita de tâmaras ou mel” [ A Compendious Syriac Dictionary Founded upon the Thesaurus Syriacus of R. Payne Smith, Edited by J. Payne Smith, Oxford: Clarendon Press. Article, ‘Shakar’] Um vinho intoxicante de tâmaras pode, em decorrência do tempo, pode ter se tornado o significado, e a palavra pode ter ganhado o significado de cerveja.

“Não já evidência suficiente para dizer que é injustificável dizer que shekar deve ser essencialmente uma bebida intoxicante, e considerando que as circunstâncias de seu uso em Dt 14:26 são tais que um intoxicante é inconsistente com o mandamento de Deus dado em outros lugares, devemos assumir que um não-intoxicante é intencionado aqui.” (13)

Uma visão semelhante é expressa pela The International Standard Bible Encyclopedia: “Provavelmente o tipo mais comum de shekar usado nos tempos bíblicos seja o vinho da tâmara (palm-date-wine). Isso não é mencionado na Bíblia e não converge com o nome hebraico yen temarin (“vinho de tâmaras”) até o período Talmúdico, mas é referido frequentemente nos tabletes de contratos (cuneiformes) entre Assíria e Babilônia, e dessa e outras evidencias nós inferimos que o vinho da tâmara era muito bem conhecido entre os povos Semitas antigos. Além do mais, é sabido que a palmeira florescia abundantemente nos tempos bíblicos, e a premissa é, portanto, muito forte ao considerar que o vinho feito do suco das tâmaras era uma bebida comum.” (14)

A Encyclopedia Biblica, editada por T. K Cheyne e Sutherland Black, oferece uma explicação semelhante a respeito do significado original de shekar:

“Nos tabletes contratuais Assíro-Babilonicos, shikaru denota geralmente bebidas intoxicantes, e em particular o vinho feito das tâmaras (Del. Ass. HWB, s.v.) De fato é extremamente provável que nos tempos pré-históricos, enquanto as raças Semitas ainda estavam confinadas em seus lares primitivos na Arabia, o principal, senão único, intoxicante era obtido de suco de tâmaras fermentado.” (15)

Fermentado ou não fermentado?

A última citação é um exemplo da premissa prevalecente de que shekar era uma bebida intoxicante, especialmente considerando que a maioria esmagadora das ocorrências no AT denotam uma bebida intoxicante que Deus desaprova. Essa pressuposição não é acurada, entretanto. Porque, como yayin (“vinho”), shekar é um termo genérico que pode se referir tanto a uma bebida doce, não fermentada como sugerido por Isaias 24.9, ou a uma bebida fermentada como indicado na maioria dos outros casos (Pv 20.1;31.4-6; Is 56.12).

A Encyclopedia of Biblical Literature, de John Kitto, explicitamente reconhece a natureza genérica de shekar, dizendo: “Shekar é um termo genérico, incluindo vinho de tâmaras e outras bebidas doces (saccharine beverages), exceto aquelas preparadas do vinho. Que shekar era tornado embriagante por ser misturado com drogas potentes, nós temos visto.” (16)

Jerônimo, o tradutor da Vulgata Latina (cerca de A.D.400) define shekar como um termo comrpeensivo para diferentes tipos de bebidas fermentadas, excluindo vinho. Entretanto a lista que ele sugere permite que algumas bebidas sejam não fermentadas. Em sua Letter to Nepotian ele escreve: “Shechar na língua hebraica significa todo tipo de bebida que pode intoxicar, seja feita de grãos ou do suco da maça, ou quando os favos de mel são fervidos em uma bebida doce e estranha, ou o fruto da palmeira espremida em um licor e quando a água é colorida e engrossada pelas ervas fervidas.” (17)

O soro doce de favos de mel fervidos poderia muito bem ser mantido e usado não fermentado, especialmente considerando seu conteúdo altamente doce. O mesmo poderia ser verdade para os sucos produzidos ao espremer (exprimitur) as tâmaras. Os mesmos métodos usados para preservar o suco de uva poderiam ser usados para preservar, por exemplo, o suco de tâmaras.

Em sua Concordância Analítica da Bíblia, Robert Young expressa a visão de que shekar denota uma bebida que pode ser tanto fermentada quanto não fermentada. Por “bebida forte” Young define shekar como “bebida doce (que sacia ou intoxica), shekar.” (18) Essa definição indica que shekar pode tanto saciar plenamente ou intoxicar, dependendo da natureza da bebida.

Depois de listar 21 referencias do AT, ele fornece a palavra grega sikera, indicando também que esta pode ser fermentada ou não fermentada: “Bebida doce (frequentemente fermentada), sikera; shekar Hebraico.” (19)

Sobrevivência de Shekar

Diversos dicionários de Inglês e enciclopédias bíblicas derivam as palavras sugar e cider do Hebraico shekar. Se isso é verdade, o que parece bem plausível, suporta a hipótese de que originalmente shekar denotava uma bebida marcada pela sua doçura. É difícil imaginar a palavra sugar derivando de um termo originalmente associado com uma bebida alcoólica tendo praticamente nenhum conteúdo de açúcar ou gosto doce.

O Popular and Critical Bible Encyclopedia fornece uma descrição concisa e compreensiva dos derivados de shekar em numerosos idiomas. Em sua primeira definição como “bebida forte – shekar”, diz: “(1) Vinho ou soro doce, shechar, delicioso, bebida ou soro doce, especialmente açúcar ou mel de tâmaras ou da palmeira (debash) … Parece mais provável, entretanto, que o soro da palma ou mel denotado por shay-kawr, era usado tanto como um doce ou artigo de alimento quanto bebida, como o Hebraico sobhe e o Romano sapa (vinho fervido), diluído com água, como os modernos soros de uva ou shebets (Pv 9:2,5). Os derivados de shechar, expressivos em seu primeiro significado, são numerosos. Em direção a Leste e Sul, seguindo o canal Arábico e as conquistas Sarracenas, encontramos formas muito óbvias da palavra Hebraica ainda expressando açúcar. Assim temos o Arabico sakar; Persa e Bengali, shukkur; Indiano jagree ou zhaggery; Marroquino sekkour; Espanhol, azucar; e Português, assucar. A onda populacional também carregou o sentido original e a forma em direção ao norte, corporificando a palabra nos idiomas Gregos e Teutonicos. Assim temos o Grego, sakehar; Latino, saccharum; Italiano, zucchero; Alemão, zuker e juderig; Russo, sachar; Suiço, socker; Francês, sucre; […].” (20)

A segunda definição dada a shekar pela mesma enciclopédia é “(2) Vinho de Tâmaras ou Palma. Vinho de Tâmaras ou Palmas em seu estado fresco e não fermentado.” Esse significado se encaixa tanto em Dt 14:26 quanto Isaias 24:9. De fato, o último é citado na enciclopédia imediatamente depois da definição dada: “O bispo Lowth traduz Is. 24.9 assim: ‘Com cânticos eles não mais beberão vinho (i.e., das uvas); O vinho das tâmaras será amargo para aqueles que o beberem.’ … Esse é o significado apropriado da palavra shekar; Grego, sikera. Toda alegria cessará; o vinho mais doce se tornará amargo para o paladar.” (21)

Depois de citar diversos relatos de viajantes do Oriente Próximo que testificam que “o vinho da palmeira, se bebido fresco, é doce como mel, mas se guardado, vira vinagre,” o artigo conclui, dizendo: “Com esses fatos perante nós, o idioma empregado pelo profeta no sublime capítulo citado acima (Is 24.9), torna-se belamenta apropriada. Sua predição é que ‘a terra será completamente pilhada,’ que a luz da alegria se transformará na sombra da angústia, assim como a bebida doce que se corrompe, azeda e amarga para aqueles que a bebem. A passagem claramente indica a natureza da bebida que foi doce, a forma que era estimada como sua mais valiosa condição, mas amarga no seu estado fermentado. Assim o bêbado é representado em Isaías 5.20 como aquele que põe o amargo pelo doce e o doce pelo amargo.” (22)

[…]

Conclusão sobre Deuteronômio 14.26

As considerações anteriores sugerem 5 razões para crer que a frase “vinho e bebida forte” em Dt 14:26 se refere a uma bebida não fermentada.

(1) O contexto maior da passagem, que convoca o povo para ser “santo ao Senhor”, abstendo-se de tudo que é impuro (Dt 14.3-21), exclui o consumo livre de bebidas intoxicantes em um festival solene de colheita “perante o Senhor” (v. 23-26), [estando de acordo, inclusive, com o ensinamento geral da Bíblia sobre bebidas alcoólicas].
(2) O contexto imediato (v.23) especifica que o dízimo deveria ser pago com produtos frescos da colheita (grão, suco de uva [tirosh], óleo e tenros cordeiros e cabritos) por aqueles vivendo próximos ao santuários. Quando consumido, o grão seria conhecido como pão e o suco de uva (tirosh) como vinho não fermentado (yayin). É absurdo imaginar que enquanto os adoradores que viviam na proximidade do santuário celebravam o festival de colheita comendo produtos frescos, aqueles que estavam distantes beberiam bebidas fermentadas.
(3) A participação do sacerdócio levítico nos festivais de colheita (v.27) excluiria o consumo de bebidas alcoólicas (Lv 10.9-10).
(4) A palavra shekar , como yayin, é um termo genérico que pode denotar tanto uma bebida fermentada quanto uma não fermentada. Para o texto em questão, o contexto pressupõe o último.
(5) A derivação de shekar, assim como seu uso em Isaias 24.9 e em palavras cognatas de idiomas Semitas e Indo-Europeus, indica que a palavra originalmente denotava uma bebida doce, que poderia se tornar amarga quando fermentada.


9 comentários sobre “O “Gorózinho” anual de Dt 14:26

  1. vinho é vinho e não suco de uva, numa festa de casamento com suco de uva. João 2:9 não distorça as escriturar pois nela contem a palavra de Deus.
    E ele lhe disse: Ai de vós também, doutores da lei, que carregais os homens com cargas difíceis de transportar, e vós mesmos nem ainda com um dos vossos dedos tocais essas cargas. Lucas 11:46

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    1. Caramba ! A questão da aceitação da verdade é mais da lavra moral do que intelectual! Cristo transformando água em vinho para uma multidão “comportada” , “moderada” , que já tinha esgotado todo o chikera e “não se embriagara ? Não é forçar a barra não viu! É paixão pela cerva , 51 , wisk e outros mais!!!!

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      1. Só faltou ele dizer que o texto bíblico se referia a beber café com leite Me perdoem a franqueza, mas chega a ser ridículo a pessoa fazer um texto quilométrico desse pra tentar distorcer oque está bem claro na palavra de Deus . Lamentável !

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  2. Fico com a bíblia! Bem aventura o homem que não se condena naquilo que faz, e, uns tem fé para comer carne, outros para comer legumes, um não condene o outro, afinal todos compareceremos diante do tribunal de Cristo.

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  3. Que forçada de barra legal hein. É muito mais fácil aceitar o que o texto obviamente diz (que se trata de bebidas alcólicas) do que fazer essa ginástica. Essa revolta contra o álcool moderado vem mais de um puritanismo herdado de certas tradições religiosas, do que de uma leitura honesta da Bíblia.

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  4. Provérbios 31:6-7 Alguém esquece da pobreza e seus problemas tomando suco doce?

    E em levítico o Sumo Sacerdote Arão tinha instruções especificas de Deus para quando entrasse na tenda não podia beber VINHO ou BEBIDA FORTE. Lógico que, quando não fosse entrar na tenda da congregação o poderia fazer, senão não teria sentido a proibição.

    E Davi o convidou, e comeu e bebeu diante dele, e o embebedou; e à tarde saiu a deitar-se na sua cama com os servos de seu senhor; porém não desceu à sua casa (Davi embriagou Urias com suco de uva?)

    O vinho alcoólico na historia da bíblia sempre existiu, assim como a bebida forte, e tantas outras bebidas não mencionadas de forma clara, vejo porém, que sempre existiu um alerta a respeito do álcool, em tudo o que vejo na bíblia existe equilíbrio, devemos ser inteligentes, responsáveis, e não usar textos isolados para defender nossas próprias opiniões. Comer demais é pecado, inveja é pecado, não ajudar ao próximo é pecado, vaidade excessiva também é pecado, se uma taça de vinho também é pecado, acho que Deus terá que dobrar o enxofre e o fogo para o último dia, por que esses que pregam tanto contra o vinho, mesmo que consumido moderadamente, devem ser santos, e não ter pecado algum, não sei como não foram arrebatados ainda.

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